2018 começou com duas provas que entram, diretamente, para a lista das melhores onde já participei.
É certo que, apesar de já andar “nesta vida” há uns anos, não tenho experiência em provas de trail de grande dimensão, mas, seguramente, são dois eventos de referência.
Falo dos Trilhos dos Reis (Portalegre) e dos Trilhos dos Abutres (Miranda do Corvo): Duas faces de uma mesma moeda dourada em que existe a combinação perfeita entre a organização de excelência, as condições naturais de eleição e o espirito único criado por participantes, equipas de apoio e público.
Trilhos dos Reis
Os Trilhos dos Reis foram uma confirmação do muito que já tinha lido, organização irrepreensível a criar um evento vibrante em que nos sentimos verdadeiras estrelas. Como vem sendo já uma tradição em provas mais distantes, fomos de véspera, conhecer a bonita cidade de Portalegre. Uma visita guiada por alguns pontos de interesse histórico levou-nos ao Convento de São Bernardo, à Sé e ao Museu da Tapeçaria, local onde decorreu uma pequena conferência com nomes maiores do trail como a campeã Fernanda Verde (a aliar a enorme atleta que é a uma simpatia desarmante… Ser campeã é isto, “corremos mais ou menos, mas somos todos iguais”), o histórico Vitorino Coragem que nos deliciou com momentos únicos por si vividos em prova ou o grande trail runner espanhol Pedro Sanchez (vencedor da prova e, igualmente, extremamente acessível, prova disso o momento em que me ultrapassou em competição e se preocupou em perguntar se estava tudo bem. É assim um campeão!).
A prova foi dura e deliciosamente bela, correr na Natureza em estado selvagem é algo de indiscritível. Começou mal com um erro infantil (falta de aquecimento) o que me fez “rebentar” na primeira subida em trilho (logo após a passagem no Convento) e com isso perder inúmeras posições e ficar na cauda do pelotão. Seguiram-se uma série de single tracks brutais com alguma lama e terra negra e fofa (gosto tanto deste tipo de terreno…) que, infelizmente, não consegui correr na totalidade por me encontrar demasiado atrás.
Nunca me senti sozinho, mesmo quando o pelotão se começou a partir, tal a quantidade de voluntários que se encontram durante todos o percurso, marcações perfeitas, abastecimentos com tudo o que é essencial e a Serra… A Serra de São Mamede faz-nos apaixonar ao primeiro contato, o cheiro das plantas, as vistas que alcançamos nos pontos mais altos (vale a pena subirmos ao “Inferno” ou “Ajoelhar perante a Rainha” quando nos esperam paisagens magnificas que só uma “tartaruga” consegue apreciar…
Cruzei-me com diferentes personagens, a “Morte” ou os “Duendes”, em locais por vezes inesperados, tornando o desafio numa experiência única e nunca nos deixando desmotivar por um momento… Aliás a monotonia é algo que não acontece aqui, há subidas diabólicas, há lama, há a Serra magnífica e imponente mas também há a passagem por pastos com animais, há pequenos caminhos particulares, há o cruzamento em aldeias em que somos recebidos com muita simpatia…
O final a descer por Portalegre, com a língua de fora mas com um sorriso no rosto ao ver a minha Merendinha (incansável no apoio) e a foto final da Bernardete! Check… Está feito e até para o ano por certo!!
Uma nota final: se vais a Portalegre, tens que provar a cerveja artesanal “Velhaca”! Que maravilha e fechar com chave de ouro!
Trilhos dos Abutres
Aqui tudo é à bruta, não há momentos fáceis.
A Serra da Lousã é um Amor antigo e difícil. Se por um lado te apaixonas, por outro és maltratado, mastigado e cuspido… Tens uma beleza natural estonteante mas, também, tens dificuldades no limite do ultrapassável…
A prova começa rápida e rolante percorrendo as ruas de Miranda do Corvo até ao Parque Zoológico. Vais a observar os veados, os javalis ou as cabras anãs quando, mal sais pelo portão, tens uma subida gigantesca até ao Templo Ecuménico Universalista (a icónica pirâmide laranja). Aqui serviu para meditar uns segundos sob a palavra “Silêncio”. Estava a preparar-me para o pior sem saber.
Descida rápida e intensa em estradão e singletrack de terra escura com direito a algumas pequenas quedas da praxe e chegada ao abastecimento da Sra. da Piedade.
Ora isto é que são os Abutres? Não sendo fácil, não era o “inferno” que tinha lido algures… Nem lama de jeito tinha apanhado… Pobre ignorante…
A seguir a um maravilhoso abastecimento com sopa quentinha para combater o frio e com as palavras e mimos reconfortantes da Merendinha, arranquei cheio de fé e confiança (mesmo sabendo que o gráfico a partir daqui estava a vermelho vivo) até ao Gondramaz (sim, é mesmo assim que se diz!). No entanto, a fé e confiança inabaláveis quebraram ao virar da esquina…
A subida da Senhora da Piedade, feita em pedaços de graus, foi terrível. Aqui, deu-se um dos melhores momentos de toda a prova, nas laterais da subida concentrava-se público, fotógrafos, apoiantes das várias equipas, um espetáculo qual Zegama portuguesa (para quem não conheça, procurem aqui www.zegama-aizkorri.com/es/), naquele instante eras a estrela!
Estava dado o início de um dos percursos, simultaneamente, mais belos e mais duros que já fiz, cascatas divinas, penhascos, subidas impossíveis, coração na boca… Chegado ao Penedo dos Corvos pensei que não ia ser possível sair dali mas de dentes cerrados iniciei a escalada dos 400 e tal metros com “perigo de queda”…
Passámos na brutal aldeia (abandonada?) do Cadaval Cimeiro onde os olhos se deliciaram quando as pernas já se tinham desligado…
Até ao abastecimento foi um percurso surreal, parecia saído dum sonho onde tudo era simultaneamente belo e brutal… Voltei a acordar quando vejo a Merendinha ao longe, com o seu sorriso tímido, misto de felicidade e preocupação… Gondramaz era nosso naquele momento!!
Mais sopa quentinha, mais um gel, mais uns mimos, matar saudades da Casinha do México e vamos embora acabar isto que “só” faltam cerca de 10km.
A descer seria mais ou menos tranquilo… ERRADO!! Sempre a descer a pique, travagens bruscas por causas das pedras, escorregadelas por causa do musgo, da água que escorria por todo o lado, uma queda aparatosa numa ponte que podia ter sido complicada e que assustou… Pedra, pedra, pedra, musgo, pontes escorregadias, verde, cascatas, atletas mais rápidos dos 50km a pedir passagem, atletas mais lentos dos 30km em dificuldades… Fim da descida a caminho de Espinho…
Está feito… AHAHAH devem ter rido os deuses abutricos… Depois do simpático último abastecimento onde mal parei pois só queria já terminar, com uma criança a correr com o pai ao meu lado oiço outro companheiro: “A criança não pode ir já até ao fim, ainda faltam 4km e é quase tudo com lama até ao joelho!” WHOWWW fiquei siderado mas os Abutres não brincam e foram cerca de 2km com lama a sério sem hipótese de escapar… Lama, água enlameada, água menos enlameada, mais lama, ténis já só num compacto monte de lama… Chegada ao Corvo e aí sim a meta era já ali…
A reta final foi um turbilhão de emoções, as imensas dificuldades passadas eram já uma saudade (será loucura?) e via a minha princesa ali ao fundo, a filmar, a correr ao meu lado, a entrar comigo no Mercado Municipal… Sim é ele… “o atleta 1325 dos Alverca Urban Runners está a terminar… um forte aplauso para ele!!”
Abutres é trail running em estado puro com uma organização incrível, atenta a todos os detalhes desde o levantamento do dorsal até ao pós-final de prova.
Abutres é A prova!!
Duas notas:
A chanfana e o vinho tinto eram fantásticos!
Quando é que os atletas se mentalizam em não deixar lixo nos trilhos? Será assim tão complicado? Querem correr em lixeiras não precisam de vir para um paraíso natural ok?